O assento de cada um no transporte público, por Elisabeth Zorgetz

Elisabeth Zorgetz
Divulgação

 

Existe uma espécie de armadilha no decorrer dos movimentos de levante popular, em especial para aqueles que buscam por à luz da verdade a administração pública. A vítima dessa armadilha não são os ativistas – exceto quanto são levados pela atenção do fato -, mas a população que se mantém no entorno do movimento. Essas pessoas não estão confortáveis em suas posições, nada é tão simples assim. Muitas vezes, essa é a parcela da população mais lesada ou preocupada com o real peso que representa a corrupção e/ou negligência de seus governantes.

Trazê-las efetivamente para o debate e a movimentação das ruas não exige apenas um esforço animado, mas uma longa duração de inclusão social, que já está em curso. A preocupação com o processo eleitoral só é coerente se estivermos formando pessoas para representar muitas outras. Votar certo não basta numa cidade onde não há candidaturas ou campanhas confiáveis, isentas de quem compre e venda um voto. A manutenção de uma estrutura ideológica coletiva original, irrigada pelas transferências de conhecimento e permeável em suas fronteiras culturais pode cumprir o papel transformador da sociedade ilheense. Mas estamos trabalhando por isso? Ou estamos acentuando desigualdades e provocando isolamentos tribais?

 Porém, falávamos de uma armadilha. Tomando como foco a luta do transporte público, se observou país afora e na nossa própria cidade, os movimentos organizados tomando como ponto de partida o desvelar das documentações e planilhas controladas pelas empresas do setor e prefeituras. De algum modo, convenceram a muitos que isso bastava para resolver a querela. Diante da inércia na resolução de um problema que não existia para aqueles que bebem direto da fonte, as relações são estreitadas pela violência e distanciadas do discurso. O manifestante é encarado como uma milícia radical em busca de uma negociação de teor político, enquanto o trabalho pela modicidade da tarifa fica para trás, tão agitados que estão os atores sociais do processo. Negociação nunca será uma ação apropriada para a cidadania.

A percepção do que é de direito e ampliação do mesmo é o instrumento de força. Mas vejamos a frieza dos dados: os itens pesados aos custos são a mão-de-obra, que varia entre 50% e 55% do custo total e os combustíveis, em torno de 30% do total. Impostos, reposição, manutenção, taxas, seguros, bilhetagem eletrônica, depreciação e garagens integram o custo final. A Prefeitura, que concede a prestação do serviço às concessionárias, sempre está a vitimizar o capital privado, avultando a dimensão dos custos que instalar o transporte coletivo gera a poucos. E a palavra menos citada nos contratos de concessão é o enigmático conforto, sem a mínima definição – embora fosse tarefa dos nossos legisladores numa lei complementar. Custos nós podemos discutir em auditorias onerosas o quanto for, mas não conheço quem queira repensar freqüências, reciclagem operacional, trajetos e superlotação. Ou ainda o lugar do ônibus no tráfego da cidade, a acessibilidade, os pontos de ônibus invisíveis e porque estão – ou não estão – lá, o ar condicionado, motor traseiro, bagageiro, transbordo, transmissão automática e o piso baixo.

Todas essas menções também são itens de um mesmo contrato.  São pontos condicionantes a uma contratação. O bojo dessa estrutura é uma competência do planejamento urbano da concedente: a Prefeitura, que se torna irresponsável, senão criminosa, na inoperância desse trabalho, pois acaba por tolher direitos básicos de acesso da população, mesmo que disfarçadamente. E pode ser pior: o principal argumento do Prefeito e Secretário de Desenvolvimento Urbano, em Ilhéus, foi atribuir as dificuldades de lidar com o sistema às remunerações por passageiro, tal como o índice de pessoa por quilometro. Parece fazer sentido? Então veja bem. Pense num avião com poltronas vazias. Caso, emergencialmente, alguém compre os bilhetes e ocupe esses lugares, o custo dessa pessoa equivalerá, no máximo, ao seu peso em combustível a ser consumido e alguns goles de refrigerante. Esse valor é insignificante se comparado aos custos fixos da viagem, sendo aquele bilhete comprado às pressas extremamente lucrativo para a companhia. Ou em alguém que toma um táxi, e no caminho da sua festa, pega mais dois amigos: o custo registrado no taxímetro será o mesmo, com um passageiro ou três.

Dessa forma, qualquer dado contábil ganha outro tom, embora exista uma trama de relacionamentos – que não interessa a nenhum usuário de ônibus – toscamente conformada em se julgar a razão custo/passageiro. A lógica é tão mal construída que se alega o decréscimo anual da utilização desse tipo de transporte. Se ignora a opressão e o terror do seu próprio sistema, que na associação anômala entre a instaurada corrupção de governos e licitantes, opera fora da própria lógica do capital privado, afastando seu cliente e reduzindo seu mercado. A pobreza, na verdade, é ponto rígido desse mercado, uma vez que seu esgotamento está na linha disforme do horizonte, forçando essa massa de homens e mulheres a uma locomoção indesejada, que lhes beira ao insuportável.

Às vezes ouço num programa de rádio uma propaganda sobre a bilhetagem eletrônica, controlada pelo SIT. No final uma voz entusiasmada diz: “o transporte é coletivo, o seu cartão não!”. A gula de receitas é tão intensa que até os facilitadores do sistema são utilizados para explorar o usuário, que mal percebe seu infortúnio. Compartilhar um cartão, para uma família pobre, significa muito e não custa absolutamente nada à empresa além daquilo que ela ganhará estabelecendo limites mínimos de recarga e desmembrando essa renda. É cruel e quase ninguém vê. Se ainda não podemos municipalizar o sistema de transporte coletivo, que possamos, pelo menos estatizar a gestão pública. Hoje ela aparenta, sem pudor algum, pertencer às relações privadas, e pior, às decisões privadas.

A cidadania que se manifesta nas ruas através do romper dos grilhões de uma falaciosa democracia instituída é importante por muitos motivos, que atuam desde a educação cívica até a construção de um projeto político mundializante. As pessoas tocadas por ela não se esquecerão, embora possam vacilar, momento ou outro em suas vidas. Isso a sociedade consegue compreender, através dos seus ciclos naturais. Imperdoável é um governo sem razão de ser. Inadiável é esse mesmo governo começar a trabalhar publicamente. Nem privadamente, obscuramente ou isoladamente. Apenas publicamente.

A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia.